Quando covarde te disse adeus

 Quando covarde te disse adeus


Estou sozinha em casa. Ligo a tv e no jornal, repórteres avisando que tem um ciclone extratropical vindo na direção sul do Brasil. Eu moro na direção sul do Brasil. 

Preparo uma sopa. Enquanto corto os legumes, me pergunto onde andará Lindolfo. 

Lindolfo era o nome do meu avô. Eu nem o conheci, mas quando vi aquele gato com um bigode preto no pelo branco, notei que parecia com um velho que eu via na  fotografia do casamento da minha mãe. Batizei o gato de Lindolfo. Ele aparecia quando queria, igual ao meu avô que abandonou a família para viver circulando entre puteiros. Espio pela janela na esperança que Lindolfo apareça antes do ciclone. Já tem um vento balançando a cachopa das árvores. Coloco alguns legumes para fritar. Não sei se devemos fritar  legumes, mas minha mãe dizia que sim. Aliás, já faz dois meses que ela não me liga. Desde que eu disse que estava gostando de uma colega de sala. Pelos menos os recibos pagos da faculdade estão vindo para o meu e-mail. Lembro da nossa última conversa. Com voz emputecida, ela disse que era absurdo, que Deus não me perdoaria e que se eu insistisse, não teria mais o apoio dela em nada. E pelo visto, nem ela me perdoaria por simplesmente amar. 

Lindolfo apareceu. Se roçou nas minhas pernas querendo um afago. Estou com fome, Lindolfo, espere! Ele também tinha fome. 

O anúncio de notícia urgente na tevê fez eu esquecer os legumes que queimaram levemente. A Defesa Civil alertava para que ninguém saísse de casa. As instituições estavam cancelando seus eventos. Empresas mandando funcionários trabalharem em home office. Isso me lembra a pandemia. Não tenho mais psicológico para outra pandemia. Ninguém tem. 

Confiro as janelas. Espero que a casa que minha mãe alugou aguente o tranco. Coloco o celular para carregar e arrumo em uma mochila lanterna, biscoitos e a ração do Lindolfo. Estava me sentindo em um cenário daqueles filmes americano que volta e meia passa na tela quente. O vento começou a cantar canções que me lembravam de Eva. Volto para ver o que restou da minha janta. 

Coloco o macarrão junto aos legumes queimados e água o quanto baste. Sento perto da lareira e ajeito um fogo. Aos poucos as labaredas vão criando forma. Consigo ver animais tremendo de frio, abandonados à própria sorte. Consigo ver Eva pintada entre as chamas. Puxo Lindolfo para perto e o abraço, como se abraçasse todos os animais do mundo. Como se abraçasse também a Eva.  Lindolfo não me rejeitou quando soube do meu amor por ela. Mas Eva, assim como minha mãe, se distanciou. Eu nunca entendi o motivo. E é por isso que hoje eu prefiro os animais. 

O vento sacudiu a chaminé da minha lareira fazendo toda fumaça parar na minha cara. A fedida realidade me fez tremer. O medo começou a tomar posse de mim. Eu estava ali, em meio a um ciclone e não tinha para quem recorrer. Quem me encontraria? Quem iria para o noticiário implorar que me achassem sob os escombros? Quem ficaria com Lindolfo? Gatos têm sete vidas. Eu, não. E uma das minhas vidas já morrera quando declarei o meu amor. Impossível que eu tivesse tanta sorte assim. Desliguei o que seria uma sopa. 

Escuto barulhos na porta. As batidas do meu coração ficaram misturadas com o barulho do ciclone. Pensei que estava imaginando coisas quando novamente escutei batidas mais fortes.

Lindolfo também percebeu e correu para trás do sofá. Fui até a porta e ouvi meu nome sussurrado em meio à tempestade. 

Reconheci de imediato a voz. Era Eva. Abri a porta e puxei-a para dentro na tentativa de protegê-la do mundo que desabava lá fora. Ela se abraçou em mim e ficamos paradas por alguns segundos, apenas ouvindo nossos corações. 

Esquecemos o tempo, o ciclone e minha mãe. Em poucos segundos estávamos no tapete que horas antes servia de cama para Lindolfo.Vi Eva como sempre desejara ter visto. Gemidos no ar compuseram  uma sinfonia com notas de tesão. Aos poucos fomos descobrindo vontades e preferências, enquanto o vento lá fora desnudava várias árvores. Eva deslizava sob meu corpo delineando cada detalhe como se marcasse um território todinho seu. Igual Lindolfo fazia ao transitar por minha casa. Agora eu me sentia a casa de Eva e correspondia a tudo que ela pedia, dos dedos frenéticos entre suas coxas, até o mais perfeito 69 em cima da mesa. 

Só não correspondi quando Eva, com lágrimas nos olhos e um sorriso encantador, me pediu em namoro. 

Isso era fora de questão. Eu a amava, mas não podia namorar. Precisava de Eva mas precisava também terminar minha faculdade. Tentei convencê-la de que seríamos muito melhores assim, vendo de vez em quando, sem compromisso uma com a outra. Mas Eva queria mais e o que ela queria eu não podia dar. 

O ciclone levou Eva embora deixando apenas um gozo misturado com lágrimas na mesa. Com fome, abracei Lindolfo e minha covardia. Adormeci no sofá. 






Merlen A.

Jun/2022

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